''Moram na viela íngreme e cascosa, que revê humidade
em pleno verão, velhas a quem só restam palavras, presas, alimentadas,
encarniçadas, como um doido sobre uma coroa de lata que lhes enche o
mundo todo. Mora de um lado o espanto e a árvore; do outro o absurdo. E
todos à uma afastam e repelem de si a vida. Moram aqui a D. Engrácia e a D.
Biblioteca. Mora aqui a Teles que passa a vida a limpar os móveis, só e
fechada com os móveis reluzentes, talvez resto de um sonho a que se apega
com desespero, e velhas só mesuras, só baba, só rancor. Ter uma mania e
pensar nela com obstinação! Criá-la. Ter uma mania e vê-la crescer como um
filho!... Mora aqui a D. Restituta, sempre a acenar que sim à vida, e a Orsula,
cuja missão no mundo é fazer rir os outros. Todos os dias a morte os leva,
todos os dias toca a finados. O nada a espera e a D. Procópia a abrir a boca
com sono, como se não tivesse diante de si a eternidade para dormir, e a D.
Felizarda a invejar as plumas da D. Biblioteca. Tudo isto se passa como se
tudo isto não tivesse importância nenhuma; tudo isto se passa como se tudo
isto não fosse um drama e todos os dramas, um minuto e todos os minutos.
(...)
Reduzimos a vida a esta insignificância... Construímos ao lado outra vida falsa,
que acabou por nos dominar. Toda a gente fala no céu, mas quantos passaram
no mundo sem ter olhado o céu na sua profunda, na sua temerosa realidade?
O nome basta-nos para lidar com ele. Nenhum de nós repara no que está por
trás de cada sílaba: afundamos as almas em restos, em palavras, em cinza.
Construímos cenários e convencionamos que a vida se passasse segundo
certas regras. Isto é a consciência — isto é o infinito...''
Raul Brandão, Húmus
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