"If you find God, you get to keep him."
Philip K. Dick
a soleira da porta e o chuveiro ambos chovem
minha gata, escondida, gira de um lado a outro como se a vida fosse isso o pé de pitangueira toma um banho o pé de noni, as cenouras, abobrinhas e o cará também naufragam entre as formigas são três da tarde e é como se fosse ontem como se a vida de um lado a outro buscasse pouso não precisei ir à praia hoje o mar caiu
há uma finíssima camada de mundo
entre todos os mundos uma membrana que nos liga e nos separa uma estrada subterrâneos mar e ar por onde os guardiães nos guardam em todo silêncio fundo há um grito que espreita e em toda ciência, a suspeita não há separação senão aquela que junta um momento a outro de revê-la
(poema do poeta popular António Joaquim Lança
musicado e cantado por José Mário Branco no álbum Margem de Certa Maneira)
O sol, o sol - grande lucidez primordial
Rios, rios - o fluxo ininterrupto
Arcos-íris- grande beatitude em si mesma livre”
~ Uma canção de Nairátmyá, incarnada ausência de eu
via Paulo Borges
‘'O mundo define-se, antes de mais nada, pelo facto de ser um planeta, isto é, um corpo, ou melhor, um conjunto de corpos caracterizados por um movimento irregular e quase perpétuo: a palavra planeta provém da raiz grega planaomai, que significa “vagar, perder-se”. O mundo é o ser da metamorfose (…) a causa, a forma, a matéria da própria metamorfose e do seu movimento.’’ Emanuele Coccia
Donna Backues - Volcano by the Sea 2020
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“Todos os viventes são, de um certo modo, um mesmo corpo, uma mesma vida e um mesmo eu que continua a passar de forma em forma, de sujeito em sujeito, de existência em existência”
Emanuele COCCIA, Métamorphoses
não bastasse a humilhação pública de morrer
espera-se do corpo que cumpra com indiscutível
pompa o intolerável protocolo de ausentar-se
a penosa execução circular e noturna do velório
a presença inconveniente dos agentes funerários
os adereços lutuosos a obscena maquiagem
no dia seguinte, o inventário das orações, a concisa
cerimônia (não há muito a dizer, sejamos honestos
e soa até a insulto que se pronuncie o nome de
Lázaro) o caixão é fechado, o dia põe-se bonito
– é quase tão imoral como alguém ter trazido uma
gravata com motivos facetos, uma camisa florida –
depois, em casa, parece que as vozes ressoam como numa
sala a que tivessem subtraído os móveis e houvesse, por isso
a estranheza de uma extensão desprovida, dissemelhante
o avô vai buscar as memórias da infância (por que
razão obscura omite ele as lembranças de casado?) há
na sua voz qualquer coisa de paciente melancolia
como se aceitasse, com constrangedora submissão, que
o tempo não se detenha nunca, que os anos nos empurrem
para um buraco na terra, nos sujeitem a tão bruta descortesia
a prontidão da morte, a ligeireza do tempo, a estupidez
da vida que nunca vai encontrar cura e razão para ela própria
contra tudo isso eu alardeio o poema, antecipo a derrota
''Nada se sabe. Tudo se imagina.'' Fernando Pessoa
''Magia é domínio da energia.'' José Medeiros
''O possível não compreende apenas os sonhos dos neurasténicos, mas também os desígnios de Deus ainda adormecidos.'' Robert Musil
''O meu objectivo é falar de corpos que se transformaram em formas de outro tipo.'' Ovídio
“a liberação da mente de sua consciência finita, tornando-se una e identificada com o infinito”
Plotino, Enéadas
''Volta o teu olhar para ti mesmo e olha. Se ainda não vires a beleza em ti, faz como o escultor de uma estátua que tem que ser tornada bela. Ela talha aqui, lixa ali, lustra acolá, torna um traço mais fino, outro mais definido, até dar à sua estátua uma bela face... até que o esplendor divino da virtude se manifeste em ti, até que vejas a disciplina moral estabelecida num trono santo.''
Plotino
“E quem seria tão infantil a ponto de acreditar que Deus, como se fosse um jardineiro [com forma humana], ‘plantou um jardim no Éden, para os lados do Oriente’[Gênesis II: 8], e formou ali uma ‘árvore da vida’ visível e palpável.[...] e novamente de que alguém pudesse participar do ‘bem e do mal’ mastigando o fruto da árvore de mesmo nome? Se dizem que ‘Deus andava no jardim à brisa do dia’ [Gênesis II: 8] e que Adão se escondia atrás de uma árvore, imagino que ninguém há de duvidar que estas sejam expressões figuradas que indicam certos mistérios através de semelhante história, e não de fatos reais.[...] E o leitor cuidadoso detectará incontáveis casos de outras passagens como estas nos Evangelhos, das quais poderá aprender que entre aquelas narrativas que parecem ter sido relembradas literalmente estão inseridas e entrelaçadas outras que não podem ser aceitas como históricas, mas que contêm um significado espiritual.”
ORIGEN de ALEXANDRIA
[De Principiis IV, 3, 1]
“Vimos da Divindade e para ela havemos de ir”
Santo Agostinho
Fernando Pessoa
INICIAÇÃO
Não dormes sob os ciprestes,
Pois não há sono no mundo. . . . . . .
O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo.
Vem a noite, que é a morte
E a sombra acabou sem ser.
Vais na noite só recorte,
Igual a ti sem querer.
Mas na Estalagem do Assombro
Tiram-te os Anjos a capa.
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.
Então Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.
Por fim, na funda caverna,
Os Deuses despem-te mais.
Teu corpo cessa, alma externa,
Mas vês que são teus iguais. . . . . . .
A sombra das tuas vestes
Ficou entre nós na Sorte.
Não estás morto, entre ciprestes. . . . . . .
Neófito, não há morte.