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O que é muito surpreendente é encontrar uma tão forte inclinação para denunciar a Vontade como uma ilusão ou como uma hipótese inteiramente supérflua depois da crença hebraico-cristã num começo divino - "No princípio Deus criou os céus e a terra" - se ter convertido numa proposição dogmática da filosofia. Em especial porque esta nova crença também afirmava que o homem era a única criatura feita à imagem do próprio Deus, e por isso dotada com uma semelhante faculdade de começar. Todavia, de todos os pensadores cristãos, só Agostinho, ao que parece, é que extraiu a consequência : " | Initium | ut esset, creatus est homo" ("Para que que existisse um começo, foi criado o homem")
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A narrativa que começa com a expulsão de Adão do Paraíso e acaba na morte e ressurreição de Cristo é uma narrativa de acontecimentos únicos e irrepetíveis : "Uma vez Cristo morreu pelos nossos pecados; e levantando.se de entre os mortos, não morreu mais". A sequência da narrativa pressupõe um conceito de tempo rectilíneo; tem um começo determinado, tem um ponto de viragem - o ano Um do nosso calendário - e um fim determinado. E foi uma narrativa de máxima importância para os cristãos, embora dificilmente tocasse o curso dos acontecimentos seculares normais : podia esperar-se que os impérios ascendessem e decaíssem como no passado. Além disso, como a vida depois da morte do cristão era decidida enquanto ele era ainda um "peregrino na terra", ele próprio tinha um futuro para além do determinado e necessário fim da sua vida, e foi em estreita conexão com a preparação para uma vida futura que a Vontade e a sua necessária Liberdade em toda a sua complexidade foram primeiramente descobertas por Paulo."
Hannah Arendt
in A Vida do Espírito Vol. II - Querer