Cartografia do existir
GEOGRAFIA INTERIOR
“Assim como o mundo tem uma geografia, também o homem interior tem sua geografia e esta é uma coisa material.” Antonin Artaud
“ Para Gilles Deleuze e Félix Guattari os indivíduos ou grupos são atravessados por verdadeiras linhas, fusos e meridianos distintos. A nossa existência é uma espécie de geografia. Somos corpos cartográficos.” Alexsandro Galeno Dantas in “Antonin Artaud - cartógrafo do abismo”
Homem Vitruviano, cerca de 1690, Leonardo da Vinci
Nijinsky, Bailarina ou o Deus da Dança (detalhe)
Recordo o homem vitruviano de Da Vinci : a figura traça um modelo perfeito de cânone anatómico, bilateralmente simétrico, dentro de um quadrado e de um círculo (como idealizara Vitrúvius). Obliterando as linhas de apoio do desenho, poder-se-ia desenhar num número infinito de disposições/ figurações do humano. De tal forma que rapidamente se acabaria com a proporção inicial da figura, e as linhas sobre as linhas trasformar-se-iam num ensaio de gestos, de movimentos, de proporções. Como se a estas linhas correspondessem meridianos de um projecto de infinitas disposições para corpo humano - linhas de possibilidade.
Cada figura, atravessada por linhas de fuga materiais e imateriais, que lançam entre possibilidades de caminho o ser : o ser, enquanto objecto espacial consequente, figura constantemente sob a mutação do tempo; e o ser, entidade cognitiva, em afirmação da sua identidade através da sua acção causal. Á luz da dualidade, Epimeteus/ Prometeus, da matriz parte a linha que descreve o que separa animalidade do corpo humano em toda a movimentação - a da sua elevação desse mundo animal pelo racional, natureza restrita ao humano (e 'dívida' do ser humano para com a evolução natural.)
No capítulo inaugural de Lógica da Sensação, Deleuze, ao debruçar-se sobre a pintura de Francis Bacon, identifica "muitas vezes um círculo (que) delimita o lugar onde se encontra situada a personagem, ou seja, a Figura. (...) o quadro comporta uma pista, uma espécie de circo, enquanto lugar. Trata-se de um procedimento muito simples que consiste em isolar a Figura. (...) O importante é que não constrangem a Figura à imobilidade; pelo contrário, cumprem o papel de tornar sensível uma espécie de progressão, de exploração da Figura no lugar ou sobre si mesma. É um campo operatório.”
Meyeherhold, Biomecânica
Cada figura, atravessada por linhas de fuga materiais e imateriais, que lançam entre possibilidades de caminho o ser : o ser, enquanto objecto espacial consequente, figura constantemente sob a mutação do tempo; e o ser, entidade cognitiva, em afirmação da sua identidade através da sua acção causal. Á luz da dualidade, Epimeteus/ Prometeus, da matriz parte a linha que descreve o que separa animalidade do corpo humano em toda a movimentação - a da sua elevação desse mundo animal pelo racional, natureza restrita ao humano (e 'dívida' do ser humano para com a evolução natural.)
No capítulo inaugural de Lógica da Sensação, Deleuze, ao debruçar-se sobre a pintura de Francis Bacon, identifica "muitas vezes um círculo (que) delimita o lugar onde se encontra situada a personagem, ou seja, a Figura. (...) o quadro comporta uma pista, uma espécie de circo, enquanto lugar. Trata-se de um procedimento muito simples que consiste em isolar a Figura. (...) O importante é que não constrangem a Figura à imobilidade; pelo contrário, cumprem o papel de tornar sensível uma espécie de progressão, de exploração da Figura no lugar ou sobre si mesma. É um campo operatório.”
O princípio da Figura é um princípio de movimento - Deleuze explica como o figurativo (a representação) implicando a efectiva relação com o objecto que se propõe a ilustrar, se pode libertar, através do isolamento, do facilitismo de representar objectivamente. Libertar-se de narrar, ilustrar ou descrever um objecto pré-existente é, então, procurar ensaiar a sua essência. A vida é movimento, e as Figuras vivem. Pela arte se inauguram novos corpos longe dos seus traumas de ser corpo: longe da finitude das suas extremidades, longe da falibilidade dos seus órgãos. Os corpos reconstroem-se libertos das necessidades, acontecem em plena autonomia. As Figuras têm poder – o de permanecer. A arte povoa.
FABULAÇÃO CRIADORA
“A fabulação criadora nada tem a ver com uma recordação, ainda que amplificada, nem com um fantasma. De facto, o artista, incluindo o romancista, excede os estados perceptivos e as passagens efectivas do vivido. É um vidente, alguém que devem. Como contaria ele o que lhe aconteceu, ou o que imagina, uma vez que é uma sombra? Viu na vida algo de demasiado grande...” Deleuze e Guattari, in “O que é a filosofia?”
FRANCIS BACON, DESFIGURADOR
Bacon insere-se num clima de tensão : a figura humana está desfigurada e, ainda assim, os gestos desviantes procuram vestígios de um real. Um real que denuncia a sua subjectividade Um real que se reinventa (como corpos vazios, carentes de “dentro”, que se esvaziam e se enchem, incessantemente). Mondzain lembra que reflectir sobre a arte é reflectir acerca dos poderes criativos que a arte tem sobre o real, ou seja, sobre a indeterminação das coisas. É uma função e deve ser considerada enquanto tal : um insuperável papel activo na construção da realidade.
A arte renasce; refunda-se e refundamenta-se pela originalidade de cada imaginação renovada. Como se o artista, apesar de “mundificado”, de irredutivelmente cicatrizado pelas coordenadas do seu percurso pessoal no espaço-tempo, tivesse capacidade para uma evasão temporária, um estado absorto à correspondência entre os conceitos por si apreendidos e os respectivos significados que imediatamente lhe surgem. Um gesto de criação fracturante, absolutamente saído dos eixos (uma reinvenção do dicionário, como se descreve em 1984 de Orwell) que transcende os contornos do previamente conhecido e realizado. A matéria é a carne, mas o humano é outro : desafia a própria humanidade.
FABULAÇÃO CRIADORA
“A fabulação criadora nada tem a ver com uma recordação, ainda que amplificada, nem com um fantasma. De facto, o artista, incluindo o romancista, excede os estados perceptivos e as passagens efectivas do vivido. É um vidente, alguém que devem. Como contaria ele o que lhe aconteceu, ou o que imagina, uma vez que é uma sombra? Viu na vida algo de demasiado grande...” Deleuze e Guattari, in “O que é a filosofia?”
“Eu já não sei quem é quem. Eu e a tela somos um só.” Cézanne
FRANCIS BACON, DESFIGURADOR
Bacon insere-se num clima de tensão : a figura humana está desfigurada e, ainda assim, os gestos desviantes procuram vestígios de um real. Um real que denuncia a sua subjectividade Um real que se reinventa (como corpos vazios, carentes de “dentro”, que se esvaziam e se enchem, incessantemente). Mondzain lembra que reflectir sobre a arte é reflectir acerca dos poderes criativos que a arte tem sobre o real, ou seja, sobre a indeterminação das coisas. É uma função e deve ser considerada enquanto tal : um insuperável papel activo na construção da realidade.
A arte renasce; refunda-se e refundamenta-se pela originalidade de cada imaginação renovada. Como se o artista, apesar de “mundificado”, de irredutivelmente cicatrizado pelas coordenadas do seu percurso pessoal no espaço-tempo, tivesse capacidade para uma evasão temporária, um estado absorto à correspondência entre os conceitos por si apreendidos e os respectivos significados que imediatamente lhe surgem. Um gesto de criação fracturante, absolutamente saído dos eixos (uma reinvenção do dicionário, como se descreve em 1984 de Orwell) que transcende os contornos do previamente conhecido e realizado. A matéria é a carne, mas o humano é outro : desafia a própria humanidade.
“... A única esperança que resta à Humanidade é a de se reconstruir, de se regenerar enquanto novo corpo...” Francesca A. Miglietti in Extreme Bodies
Donnie Darko, Richard Kelly, 2001
No filme de culto juvenil Donnie Darko, os fluxos de movimento dos vários personagens ganham uma materialização visível : desenham as linhas de energia que se cruzam à medida que as presenças humanas oscilam entre si (uma festa torna-se um jogo de movimentações, um palco de energias juvenis cruzadas), como se cada unidade emanasse uma radiância individual. Um pré-determinismo...?
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