CARTA DE ADÃO A EVA, EVOCANDO O MOMENTO ESCULPIDO POR CANTO DA MAYA
Eva,
Deste silêncio te escrevo, mulher,
De mim, da minha mesma humanidade.
Deste silêncio te escrevo, mulher,
De mim, da minha mesma humanidade.
Somos corpos da cor da terra,
Das cores do pó onde ainda nenhuma
Criatura rasteja e escrevo-te,
Das cores do pó onde ainda nenhuma
Criatura rasteja e escrevo-te,
Deste remoto lugar de criação,
Para te dizer o que em ti vejo, mulher,
O que em ti,
Para te dizer o que em ti vejo, mulher,
O que em ti,
Eva, do mesmo pó que eu, contemplo.
Um diante do outro, recurvos,
Sobre as nossas próprias pernas escorados,
Um diante do outro, recurvos,
Sobre as nossas próprias pernas escorados,
Te sinto presente e estremeço. Tenho
As mãos levantadas acolhendo
O teu sorriso ainda liberto
As mãos levantadas acolhendo
O teu sorriso ainda liberto
Do sobrevalor da maternidade,
Da vileza da submissão, do torpor
Do recato. Eva, que te vejo
Da vileza da submissão, do torpor
Do recato. Eva, que te vejo
Repetindo a trama para te não
Deixares levar pela cupidez,
Senhora consciente da secura
Deixares levar pela cupidez,
Senhora consciente da secura
Provocada pelo excesso da ânsia
E pelo nojo. Te antecipo a remoer
Palavras, a prever a dor de um filho
E pelo nojo. Te antecipo a remoer
Palavras, a prever a dor de um filho
Morto nos teus braços, Eva. Mulher,
Rendida, como eu, homem, a não
Haver tempo ainda, a não sentir
Rendida, como eu, homem, a não
Haver tempo ainda, a não sentir
O peso de estarmos vivos. Serás,
Um dia, dona da tua própria
Submissão, darás do teu seio a quem
Um dia, dona da tua própria
Submissão, darás do teu seio a quem
Te chamará puta e acolherás
Em tua casa aqueles de quem vais sentir
A culpa que não reconhecem. Eva,
Em tua casa aqueles de quem vais sentir
A culpa que não reconhecem. Eva,
Digo-te que um dia as tuas mãos
Irão segurar outros frutos, diferentes
Desse que colheste ainda agora
Irão segurar outros frutos, diferentes
Desse que colheste ainda agora
Daquela árvore e me apresentas sem
A sombra do medo, sem a violência
Do desejo dos corpos. Somos ambos
A sombra do medo, sem a violência
Do desejo dos corpos. Somos ambos
Da mesma cor do chão que calcamos, Eva.
Temos a nudez solta e olhos
Que quando se fecham podem ver mais longe.
Temos a nudez solta e olhos
Que quando se fecham podem ver mais longe.
Nada nos falta sendo iguais. Nem sei
Como te antevejo recolhida, escondendo,
Mulher, o peito, as nádegas, o rosto.
Como te antevejo recolhida, escondendo,
Mulher, o peito, as nádegas, o rosto.
Ainda não reconheço em ti a folha
A ocultar-te o sexo, a fome de seres
Outra sendo tu. Renascerás
A ocultar-te o sexo, a fome de seres
Outra sendo tu. Renascerás
Das águas, soprada pelo vento
Até à margem, a perpetuar a beleza
Arrumada em códigos; posarás
Até à margem, a perpetuar a beleza
Arrumada em códigos; posarás
Com Jeff Koons, brilhando desafogada
E limpa na aparência de novos
Dias. Eva, mulher de mim, da mesma
E limpa na aparência de novos
Dias. Eva, mulher de mim, da mesma
Humanidade que eu, homem, de ti,
Semelhantes corpos, fragilidade
Neste abismo ou paraíso.
Semelhantes corpos, fragilidade
Neste abismo ou paraíso.
(in Flanzine, 14 - Dezembro de 2016)
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