A Ghost Story, David Lowery, 2017
PAJAMA PARTY NO PÓS
A GHOST STORY
M: Como é que visitamos os nossos mortos, meu amigo?
C: Já dizia o Ginsberg, estamos entregues às mãos em transe. O corpo feito invólucro de outras vozes, de almas melhores. Escrevemos como quem se deixa ir, sem fronteiras. E, quando nos lemos, não nos reconhecemos ali: fomos as vozes de outros como uma alucinação de psicadélicos...
M: Se nos deixarmos vestir e estivermos dispostos a largar o ego e o ornamento... A palavra é também um instrumento da religião e os religiosos sabem-no: uma oração ou uma passagem repetem-se como um vínculo para deus. Como é que podemos mentir com a mesma língua com que rezamos? Como é que podemos, nos encargos mais mundanos do dia-a-dia, fazer um uso rasteiro da língua que, complexificada pela mentira, aguça argumentos como punhais, entre a retórica e a manipulação?
C: Há uma imagem no meio, entre a intenção e a palavra. E essa imagem está toda no rosto, apta a ser lida. (Há gente que, de tão treinada nisto dos homens, sabe ler um rosto humano como um mapa, aí reconhecendo o que as palavras contradizem.)
M: Sim. Em simultâneo, há o poder activo do olhar. Interpelamos algo/alguém quando o olhamos. Uma pessoa que observamos na rua vai, instintivamente, voltar-se na nossa direcção porque se sente observada. O Rupert Sheldrake, professor de parapsicologia em Oxford, tem-se dedicado a explicar isto: como as imagens não estão dentro na nossa cabeça, mas fora, como seres autónomos que podem ser capturados pela visão das mentes mais sensíveis. A sua teoria, ainda pouco consensual, para mim faz todo o sentido e explica muita coisa, a começar pela intuição. E eu, que sou gémea, sei tudo sobre essa espécie de telepatia, que não é mais do que ver com a mente os sítios onde não estou, sentindo-os como alguém que não sou eu - é a minha gémea, o meu outro eu... Já coleccionei N exemplos disto...
C: Imagino. Os meus mundos mais proféticos são construídos em sonhos. Ao dormir, recolho pistas e antecipo os desenlaces que a realidade me trará. Depois, vivo em perpétuo dejá-vu. É habitual mas não deixa de ser estranhíssimo...
M: Infelizmente, os meus sonhos são sempre alegóricos e nunca trago nada deles senão confirmações. Quem recusa ajudar-me a escalar a montanha no sonho são, na realidade, as pessoas em quem eu não confio no dia-a-dia. O dejá-vu aconteceu-me uma só vez. Tinha um pesadelo recorrente quando era criança: ia de carro com os meus pais por uma estrada à beira-mar, num dia cinzento e de chuva e observava do vidro o mar revolto. Uma onda gigante vinha de longe e engolia o carro. Eu acordava, em sobressalto. Um dia, num fim-de-semana fora, viajei com os meus pais por um cenário que era tal e qual, sem tirar nem por, o dos meus pesadelos. E foi paralisante: nesse dia, por receio, estava certa de que ia morrer a qualquer hora.
C: Tenho dificuldades em dar-me com pessoas muito idosas porque é comum ouvir-se que elas ''sabem que se estão a ir'', como se tivessem a pontinha do pé noutro sítio qualquer. Arrepia-me pensar nessa morte a operar dentro do corpo, a espalhar-se de mansinho e a fazer-se notar...
M: Mas, porque se repetem os símbolos e os rituais entre as culturas? Porque é que todas as crenças - religiosas ou pagãs - estão preocupadas, não só com o ''bem viver'' como com o ''bem morrer'', procurando vincar a maior distância possível entre os dois mundos? Por exemplo, será que (como é costume ouvir-se) os espíritos que ficam presos à terra são os que não morreram bem (faleceram subitamente, deixaram assuntos de maior por resolver ou foram assassinados) - como vem reforçar este A Ghost Story? Eu sinto que sim. Como diz o Pascoaes ''...as coisas que me cercam silenciosas. São almas a chorar que me procuram. Quantas vagas palavras misteriosas. Neste ar que aspiro, trémulas, murmuram! Vozes de encanto vêm aos meus ouvidos, Beijam meus olhos sombras de mistério. Sinto que perco, às vezes, os sentidos. E que vou a flutuar num rio aéreo...''
C: Essas tuas histórias, essa tua parecença com as mulheres mortas, esses vídeos em que capturas o vento que se levanta quando passas. Essas luzes totais que, no meio do nada, chegam de sabe-se lá onde e que, num instante, iluminam tudo com um clarão logo que se extingue... Assustas-me mas deixas-me a pensar: será que não são espíritos nem fantasmas mas sim tu, e essa tua vitalidade descontrolada, quem interfere a energia e produz isso (como os sons fazem ecos)?
M: Com vergonha de mim, os meus namorados sempre me disseram para não falar sobre isto. Recomendaram que tivesse pudor em exprimir as minhas experiências, para não ser alvo do escárnio alheio.
C: Mas, num relance básico de aritmética, não achas que as pessoas que menos aceitam estes misticismos (mesmo que, para mim, sejam empirismos), são também as menos preocupadas com os outros, as que só aceitam a humanidade segundo os seus arquétipos previamente traçados?
M: Sim, são as mesmas que não têm imaginação para sair de si e perceber que não somos senão invólucros insuflados por uma energia maior do que o corpo... O corpo é uma situação. A mente é uma força colectiva que construimos juntos. A mente é a humanidade, a soma de indivíduos... Aquilo a que se chama a consciência global...
C: Talvez o percebam à beira da morte... Será que, como os animais, vamos antecipar a própria morte nas horas que a antecedem (e, aí, cair num filme total como os que descrevem experiências de quase-morte)?
M: Sim... mas o Tristan Tzara dizia que a psicanálise é uma doença porque não há razão para querermos colocar por palavras todos os nossos sentimentos...
C: Desconfio de todas as igrejas mas sei que tudo isto está organizado... E sei que tudo, mesmo o confronto, é suposto para que cresçamos uns com os outros...
M: Então Deus deu-me um gato cego para que desconfiasse da realidade aparente, para que, também eu aprendesse a ouvir para lá do som [risos]?
C: Isso está provado, minha amiga. Projectas ecos de ti. O Buber tem textos sobre isso. Também não falamos apenas entre nós. Falamos para uma plateia tendencialmente infinita.
M. Essa consciência, no contexto amoroso, é muito importante. Quanto mais ouves as mesmas palavras encherem-se e esvaziarem-se, uma e outra vez, mais certezas tens de que nunca mais as queres ouvir. As pessoas têm dicionários diferentes e a palavra AMOR é uma das mais indefiníveis...
C: É uma palavra viciada. Por isso é que acho que é perfeitamente possível ter uma relação amorosa plena sem nunca pronunciar a expressão ''amo-te''. Dá para amar com outras palavras menos "intoxicadas". Na definição de Amor, há uma economia afectiva que investe as palavras de uma determinada importância, muito efectiva. É preciso usar outras palavras, mas depois... falar de amor torna-se revigorante. O ''Amo.te'' até já é marca registada daquele Pedro Miguel Ramos, já não dá para usar, por questões de copyright...
M: [Risos]