"Não fora o canto final da Comédia de Dante que me imprimira a identidade, quando o li pela primeira vez, nesse dia, ainda na escola? Canto Trinta e Três do Paraíso, para mim a culminação, onde Dante diz:
"Observo as folhas dentro da fornalha sem fundo
Num volume envolvido pelo amor, o mesmo
Que o Universo mantém espalhado por todo o seu labirinto.
Substância e acidentes, nos seus modos, tornam-se
Como que fundidos uns nos outros, todos de tal forma
Que aquilo que eu digo é uma simples chama."
A soberba tradução de Lawrence Binyon; e depois os comentários de C. H. Grandgent a essa passagem:
"Deus é o livro do Universo."
A que um outro comentador, não me lembro qual, observou: "Trata-se de uma noção platónica." Platónica ou não, essa é a sequência de palavras que me enquadrou, que me fez o que sou: essa é a minha fonte, essa visão e esse relato, essa vista das coisas finais. Não me considero cristã, mas não posso esquecer essa visão, essa maravilha. Lembro-me da noite em que li esse canto final do Paraíso, em que o li de facto, pela primeira vez; tinha um dente infectado e doía-me horrivelmente, insuportavelmente, por isso fiquei de pé toda a noite, a beber uísque puro e a ler Dante, e às nove da manhã do dia seguinte fui directa ao dentista sem telefonar, sem uma marcação, apareci com as lagrimas a escorrerem-me pela cara abaixo, suplicando ao Dr. Davidson que fizesse qualquer coisa por mim... o que ele fez. Por isso, esse canto está profundamente gravado em mim; está associado a uma dor terrível e uma dor que durou horas, durante a noite, pelo que não havia ninguém com quem falar; e disso saí a aprofundar as coisas últimas à minha própria maneira, não uma maneira formal ou oficial, mas, de qualquer forma, uma maneira.
"Aquele que aprende, deve sofrer. E mesmo no nosso sono, a dor que não pode esquecer cai gota a gota no coração, e para nosso próprio desespero, contra a nossa vontade, chega-nos a sabedoria pela graça medonha de Deus."
Ou lá como é. Ésquilo? Não me lembro agora. Um daqueles três que escreveram tragédias.
O que significa que posso dizer com toda a verdade que, para mim, o momento de maior compreensão, em que finalmente conheci a realidade espiritual, chegou em ligação com uma irrigação de emergência dos canais da raiz e duas horas na cadeira do dentista. E doze horas a beber uísque, mau uísque, por sinal, e simplesmente ler Dante sem ouvir a aparelhagem ou comer - não havia forma de poder comer -, e sofrer, e tudo isso valeu a pena; nunca o esquecerei. Portanto, não sou diferente de Tim Archer. Também para mim, os livros são reais e estão vivos; as vozes de seres humanos saem deles e compelem a minha aceitação, da mesma forma que Deus compele a nossa aceitação do mundo, como dizia Tim. Quando se esteve em tão grande miséria, não se vai esquecer o que se fez, se viu e se pensou e leu nessa noite; eu nada fiz, nada vi, nada pensei; li e recordo-me; nessa noite não li Howard the Duck ou The Fabulous Furry Freak Brothers ou Snatch Comix; li a Comédia de Dante, do Inferno aoPurgatório, até que finalmente cheguei até aos três coloridos anéis de luz..."
Angel Archer, narradora de The Transmigration of Timothy Archer, de Philip K. Dick